Crescimento ao longo da história transformou Serviço do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina – HCFM, em referência para o país
No dia 8 de junho de 1967, entre as centenas de publicações trazidas pelo Diário Oficial do Estado (DOE), uma viria a se transformar em importante capítulo da história da Dermatologia no Brasil. Nesta data foi referendado o comissionamento da Dra. Neuza Lima Dillon, médica assistente do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), para atuar junto ao Departamento de Clínica Médica da recém-criada Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu (FCMBB), com a missão de estruturar o Serviço e a Disciplina de Dermatologia.
O convite partiu do professor Álvaro Oscar Campana e contou com aprovação do Prof. Sebastião de Almeida Prado Sampaio, chefe do Serviço de Dermatologia do HC-FMUSP, sob a condição de que, no máximo em três anos, a médica regressasse ao seu posto, na capital. Não foi o que aconteceu. “Ela se apaixonou por essa nova escola, esse novo desafio. E percebendo as possibilidades de crescimento, mudou seus planos e aqui ficou”, recorda o professor titular Silvio Alencar Marques, aluno da VI Turma de Medicina da FCMBB e hoje decano da Disciplina de Dermatologia da FMB.
O início dessa história, 8 de junho de 1967, dia de sonhos, ousadia e coragem, foi escolhido como data de aniversário do Serviço de Dermatologia, que portanto, comemora nesta quarta-feira, 55 anos de atividades. A capacidade de vislumbrar o futuro e a tenacidade em superar as dificuldades inerentes a uma escola médica que ainda cheirava à tinta, fizeram da Dra. Neuza a pessoa adequada para a missão que lhe foi confiada.
“Quando cheguei não tinha nada, os prédios estavam vazios, não havia doentes para darmos aulas práticas… As práticas eram realizadas na Santa Casa de Misericórdia e as teóricas no Arcebispado da cidade. O crescimento do serviço e as conquistas foram gradativos. De uma lixa a equipamentos; de um leito para dois; de um nada para uma mesa e um armário; de espaços emprestados à primeira sala para a Dermatologia”, relatou a médica, no livro comemorativo aos 50 anos da FMB.
Início
O primeiro curso de semiologia iniciou-se em 14 de agosto de 1967. No ano seguinte, em 1968, já houve um grande avanço com Internato em Dermatologia para o 6° ano, Fisiopatologia em Dermatologia para o 5° ano e Semiologia para o 3°ano, sendo rotina que alunos mais graduados participassem como auxiliares de ensino em Dermatologia para o Curso de Semiologia. Para que a especialidade pudesse crescer, a estratégia adotada foi ganhar espaço na graduação, criar o programa local de Residência Médica e garantir leitos próprios no Hospital das Clínicas. E o plano foi cumprido à risca.
Em 1970 iniciou-se o programa de Residência Médica – primeiro de Dermatologia do interior de São Paulo -, com três vagas. Os residentes pioneiros foram José Wilson Serbino, Ivander Bastazini e Salomão Kripp. E, no hospital, a Dermatologia passou a ter seis leitos sob sua responsabilidade. “O serviço cresceu relativamente rápido. Evidente que no início a residência enfrentou muitos percalços. Os materiais didáticos e instrumental cirúrgico eram emprestados do HC da USP. Dra. Neuza chegava a colocar dinheiro do próprio bolso para garantir o mínimo para realização das atividades. Foi uma mulher corajosa e dona de uma visão extraordinária”, ressalta Prof. Sílvio.
A primeira docente efetiva a fazer carreira dentro do serviço foi a professora Marta Habberman. Depois, por breve período a professora Conceição Aparecida Alves Vaz e, na sequência, o professor Silvio Alencar Marques, contratado em 1978. “Quisera eu ter sido contratado antes, mas as condições da época não favoreciam a um ativista político como eu”, relembra.
Com a criação da Unesp, em 1976, a especialidade passou a fazer parte do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias, Dermatologia e Diagnóstico por Imagem. A partir de 1978, a disciplina adquiriu organização mais sólida e em sucessão relativamente rápida, vieram os professores Joel C. Lastória, Sílvia R. C. Barraviera, Maria Regina C. Silvares, Vidal Haddad Jr e Luciana P. F.Abbade, esta última contratada para a vaga da Dra. Neuza. Em pouco tempo, com a contratação de Helio A. Miot e Juliano V. Schmitt somaram-se nove docentes na Dermatologia em tempo integral. Não havia, e não há, nenhum serviço no interior de São Paulo com essa característica.
Evolução
Desde então o serviço se firmou como um dos mais importantes e procurados do País. Com a consolidação de seu corpo funcional, ampliação da residência médica, vasta produção científica e alta demanda por atendimento especializado, em 1994 a Dermatologia passou a constituir departamento autônomo junto com o Serviço de Radioterapia do HCFMB. Esse passo abriu as portas para contratações, ampliação de número de leitos, robustez da carga horária com atividades didáticas a partir do terceiro ano médico, além de justificar a busca por melhorias, incluindo instrumental, material, equipamentos e infraestrutura para pesquisa.
“A partir de 1994, constituímos um corpo de docentes que tem como característica o excelente relacionamento, de apoio mútuo, que mantemos até hoje. Tivemos diversos pioneirismos como ter sido o único serviço de Dermatologia à época no interior de São Paulo a trabalhar com pacientes infectados com o HIV e pacientes com Aids. Isso foi um diferencial que deu espaço a novos conhecimentos, novos caminhos de estudos e de assistência”, destaca o professor Silvio.
Atual chefe do Departamento de Infectologia, Dermatologia, Diagnóstico por Imagem e Radioterapia, a professora Luciana Abbade reforça o crescimento estrutural e a a relevância que a especialidade experimentou ao longo de seus 55 anos dentro da FMB. “A estrutura atual inclui seis docentes em dedicação exclusiva, 18 residentes (6 R1, 6 R2, 6 R3), dois estagiários do quarto ano atuando exclusivamente em cirurgia dermatológica, oito médicos contratados, muitos com doutorado e mestrado. “Há muitos anos a residência de Dermatologia tem sido a especialidade mais concorrida. Por conta disso recebemos residentes de alta qualidade e isso mantém o serviço sempre dinâmico, nos alimentandos com essa competência”.
Outro dado a ser destacado é que levantamentos recentes apontam que a Dermatologia foi a especialidade com a maior produção científica por docente dentro da FMB. Os professores Hélio Miot e Vidal Haddad Júnior figuraram na lista dos pesquisadores mais produtivos e influentes do Brasil, da América Latina (AL) e dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) em 2021, de acordo com o ranking da AD Scientific Index 2021, considerado o mais confiável levantamento para avaliação de produção científica no mundo.
A professora ressalta que enquanto a formação do médico é mais voltada à assistência, o papel do docente dentro da universidade deve ir além, priorizando também a pesquisa. “Esse é outro diferencial nosso. A pesquisa básica é importantíssima, mas o perfil do nosso grupo é fazer pesquisa clínica alimentada pela assistência. Temos também um papel muito forte junto aos alunos no que diz respeito a iniciação científica. Todos nós aqui já orientamos ou estamos orientando alunos, inclusive com publicações conjuntas. E agora com a entrada de novos docentes nos concursos que estão sendo abertos, eles já virão sabendo que o papel é exatamente esse. Precisamos estar sempre atualizados, promovendo uma assistência de qualidade, que terá repercussão em nossas pesquisas”.
Serviços
Assim como outras especialidades, o atendimento aos pacientes da área dermatológica foi duramente afetado pela pandemia da Covid-19. Aos poucos, o setor busca intensificar o ritmo de agendamento de consultas e procedimentos, com objetivo de retomar aos níveis pré-pandemia. Um exemplo, é o Ambulatório de Triagem Dermatológica que recebe os pacientes encaminhados pelas unidades básicas de saúde. Anteriormente eram atendidos 20 pacientes por período, exceto às quartas e sextas-feiras de manhã. Hoje são atendidos cinco pacientes por período. O impacto é tão representativo que projeções indicam que levará entre um ou dois anos para voltar à dinâmica anterior.
Dentro do serviço de dermatologia geral são disponibilizados vários ambulatórios específicos, o que coloca o serviço em sintonia com o que há de mais atual em sua área de atuação. “Quando você consegue ter ambulatórios que tratam doenças específicas você tem um crescimento tanto na qualidade da assistência, quanto na pesquisa. Acompanhamos a evolução mundial, inclusive com ambulatórios de psoríase com muitos pacientes sendo tratados com medicações de ponta, como por exemplo, os imunobiológicos. Temos ambulatório de imunossuprimidos, pós transplante ou infectados pelo HIV. Aos quais se somam os ambulatórios de micoses profundas, linfomas cutâneos, acne, doenças dos cabelos e unhas, úlceras cutâneas crônicas, oncológico, lesões pigmentadas, dermatoses bolhosas, urticária, infecções sexualmente transmissíveis, hanseníase, colagenoses, cosmiatria, dermatopediatria. Isso nos diferencia também”, explica Luciana Abbade.
Em relação à assistência oncológica, a Dermatologia conta com um serviço de oncologia cutânea de alta qualidade, voltado ao acompanhamento ambulatorial de pacientes que tiveram tumores e a procedimentos cirúrgicos para casos de câncer de pele. “Temos uma demanda altíssima de casos oncológicos, inclusive do melanoma, que embora sendo um câncer menos frequente tem uma alta taxa de mortalidade quando não diagnosticado precocemente. Temos as campanhas de câncer de pele que são feitas anualmente junto com a Sociedade Brasileira de Dermatologia, onde em apenas um dia chegamos a atender cerca de 600 pessoas e já agendamos cirurgias para os casos suspeitos. Esse é um papel importante da Dermatologia junto à população”, comenta a chefe do departamento.
O professor Silvio Marques também destaca a excelência dos profissionais que atuam na área de cirurgia dermatológica. E cita o caso do professor Hamilton O. Stolf, formado pela FMB, que fez treinamento na Espanha e hoje é um dos mais conceituados cirurgiões dermatológicos do país. “Nasceu aqui e, se não com apoio claro e ostensivo da Dra. Neusa, que via com reservas esse aparente extrapolar da dermatologia clássica para uma dermatologia intervencionista, ela não se opôs e o Hamilton pode crescer e deixar sucessores. Vários dos colegas treinados pelo Hamilton são hoje cirurgiões dermatológicos de qualidade”.
Desafios
Ao falar sobre os desafios para o futuro, professora Luciana fala da busca pelo fortalecimento das disciplinas menores. “O Departamento onde a Dermatologia se insere é bastante heterogêneo. E agrega a infectologia, radioterapia, radiodiagnóstico e medicina nuclear. A universidade nos obriga a ter um maior número de docentes para compor um departamento. Essa heterogeneidade, algumas vezes, faz com que disciplinas menores tenham mais dificuldades para manter a contratação de novos docentes. Por conta disso, publicam pouco e com menos produção isso conta muito na hora de novas contratações. Isso sem falar a concorrência com o mercado privado. Esse é um grande desafio. Conseguir que todas as disciplinas pertencentes ao departamento sejam fortes”.
Luta por leitos
A chefe do departamento também menciona a falta de leitos de enfermaria específicos para o atendimento de pacientes dermatológicos dentro do HCFMB como um grande desafio e problema a ser resolvido. “Estamos sempre em discussão sobre essa questão com a Superintendência. A influência da pandemia ainda está presente dentro do hospital. Mesmo depois de um alívio, sabemos que as pressões de ordem financeira são enormes e ainda não se conseguiu retornar ao mínimo necessário para que a gente possa ser atendido. Mas é inegável que um serviço do nosso porte está sofrendo atualmente por não ter leitos específicos da Dermatologia, como tínhamos no passado. Isso se reflete na qualidade da assistência e na formação dos alunos e residentes”.
A docente adverte que, por desconhecimento, muitas pessoas subestimam a gravidade de algumas doenças dermatológicas. “Nossa demanda em plantões, mesmo não tendo leitos específicos, é grande. Nós recebemos pacientes referenciados do pronto socorro. Atendemos muitos casos de infecção de pele graves, muitas gravíssimas. Inúmeras reações medicamentosas grave, do hospital todo. E nesses casos faria muita diferença se nós tivéssemos uma enfermaria especializada. O tratamento acaba sendo diferente. A enfermagem é preparada, assim como é em uma unidade de grandes queimados. Nós também temos as nossas necessidades e a formação da equipe é diferente. Por isso que a gente briga por esse espaço”.
“Nós chegamos a ter dezesseis leitos sob a gerência da Dermatologia. Internávamos um rol de enfermidades relativamente amplo, com foco na assistência, embora muitos servissem também para pesquisa. Pouco a pouco, na medida em que o hospital deixou de ter um perfil mais universitário para ser um hospital geral SUS, com atenção ampliada, demandas começaram a se fazer mais importantes e algumas especialidades, entre elas a Dermatologia, foram perdendo seu espaço. Ficamos a depender da dinâmica do hospital geral que não vai favorecer nunca um paciente dermatológico, entendido por quem desconhece, como paciente sem gravidade”, completa o professor Silvio.
Uma alternativa, segundo o docente, seria a abertura de leitos específicos no Hospital Estadual, unidade que compõe o Complexo HCFMB. “Do ponto de vista de ser capaz de oferecer uma boa assistência, não vou dizer que a gente está perdendo essa qualidade, mas ela poderia estar mais robustecida se tivesse uma infraestrutura hospitalar melhor do que temos agora. A Dermatologia tem que voltar a ter seu espaço”, completa.
Cuidado com a cosmiatria
Segundo a professora Luciana Abbade, o interesse pela Dermatologia sempre foi grande no processo de formação médica, já que se trata de uma especialidade com ampla variedade de ações. “Se quiser, o profissional pode ser apenas dermatologista clínico, pode ser cirúrgico ou fazer as duas coisas. Isso atrai muito. E a questão da qualidade de vida também está diretamente envolvida. Isso também pesa na hora da escolha. É uma especialidade que acaba sendo menos estressante no sentido de horários de plantões e emergências. Embora na área hospitalar isso seja diferente”, comenta.
E também se trata de uma especialidade que, além dos cuidados com a saúde, tem forte apelo estético. Uma das preocupações que envolve a formação dos profissionais que atuarão na área é quanto ao foco demasiado na chamada cosmiatria, subespecialidade voltada exclusivamente para o tratamento e prevenção de problemas estéticos. Os residentes da FMB recebem treinamento que lhes permitem, caso haja interesse, atuar no setor privado ou de convênio, preparado para esse tipo de demanda que é real e crescente.
“O cuidado que temos que ter é a boa formação dentro da área cosmiátrica. Não só de habilidade, mas de saber indicar, saber prevenir determinadas situações e que não são raras, da busca da perfeição corporal que leva a transtornos inclusive de ordem psiquiátrica. Tudo isso temos que tentar trabalhar.”
“Aqui a gente centraliza o atendimento em doenças, mas também temos que ter esse olhar para o treinamento cirúrgico e o treinamento da cosmiatria com todas as suas vertentes, que inclui saber lidar com excessos de demanda de um mesmo paciente, que pede para fazer isso ou aquilo, como se ele comandasse a consulta”, ressalta o Professor Sílvio.
Futuro
Ao falar sobre o futuro, a professora Luciana Abbade acredita ser possível dar sequência ao legado deixado pela Dra. Neuza L. Dillon. “Há um bom tempo eu faço parte dessa história. Em relação a disciplina de Dermatologia, vejo com bons olhos o que está por vir. Temos pessoas com formação para dar continuidade ao que foi construído até aqui. Temos um corpo docente ainda jovem. Somos em seis e temos três mais novos que eu. Temos condições de nos manter na liderança da dermatologia nacional. Nós somos muito reconhecidos por nossa história. O desafio de permanecer forte e até melhorar não é pequeno. Temos condições de manter esse legado deixado pela Dra. Neusa. Continuaremos a ter bons frutos”.
Mesmo já tendo iniciado a contagem regressiva para sua aposentadoria compulsória, o professor Silvio Marques pretende continuar ligado às atividades do departamento. “Esse é meu último ano efetivo enquanto docente porque depois saio pela compulsória, no começo de 2023. Mas vou me manter ligado de alguma forma. Há áreas de sub especialidades que gosto muito, e pretendo continuar, pois tenho boa saúde e estou motivado. Temos que estimular e dar espaço aos docentes mais jovens. Nesses dois próximos concursos que serão preenchidos, quem vier terá que vestir a camisa porque nossa história é de luta. Temos que manter a chama e quero crer que o futuro da Dermatologia do HCFMB será de muita produção, de muita qualidade e modernização constante”.
Os docentes fazem questão de concluir a entrevista lembrando as inúmeras contribuições para esta história de sucesso: Servidores, em especial Sarah Poloni, Marcos A. R. Lemos, Levi Pascoal, Biólogas Rosangela M. P. Camargo e Maria Rita P. Fortes, Aposentadas Luiza Sperandio Arantes e Maria Luiza Deleu, Eliete Corrêa Soares, Patologista Mariângela E.A. Marques, além das gerações de médicos residentes e de alunos. Ou seja, Dra. Neuza Lima Dillon, de única em 1967, se transformou em centenas.
Carlos Pessoa
Assessoria de Comunicação e Imprensa – ACI/FMB