Jazigo de Ana Rosa, sepultada em cemitério de Botucatu, atrai milhares de pessoas no Dia de Finados

 
Mais de 100 anos depois, o túmulo da moça ainda é preservado pelos moradores da cidade, atraindo pessoas de várias regiões do Brasil, sendo considerado ponto turístico

Na manhã do dia 22 de junho de 1885, um fazendeiro cavalgava por Botucatu, cidade a 235 km de São Paulo, quando o animal, inesperadamente, o conduziu para um terreno nos arredores do município, próximo ao Rio Lavapés. Ali, o homem encontrou abandonado o corpo de uma mulher mutilada, sem os seios, orelhas, lábios, dedos e língua.

Graças a uma escrava fugida que viu o crime, escondida, foram reconhecidos assassino e vítima: a jovem era Ana Rosa, de 20 anos, e seu algoz era o próprio marido, Francisco Carvalho Bastos, conhecido como Chicuta, um influente carreiro com idade entre 40 e 45 anos.

“Segundo o relato da testemunha, o crime ocorreu de madrugada. Chicuta teria batido na mulher, cortado-a aos pedaços e matado-a aos poucos”, conta o aposentado Moacir Bernardo, presidente do Centro Cultural de Botucatu.

A tragédia de Ana Rosa chocou a pacata Botucatu do século 19, que compareceu em peso no seu enterro. Mais de 100 anos depois, o túmulo da moça – uma construção rosa modesta localizada no Cemitério Portal da Cruzes – ainda é preservado pelos moradores da cidade, atraindo pessoas de várias regiões do Brasil, sendo considerado ponto turístico da Cidade

Mais que empáticos à tragédia da jovem, muitos ali são devotos de Ana Rosa, considerada milagreira na região. Seu túmulo tem mais de 200 placas em agradecimento de pessoas que afirmam ter alcançado graças por intercedência dela.

“É tradição em Botucatu as pessoas irem no cemitério visitar túmulos de seus parentes e também passarem no túmulo de Ana Rosa para rezar, agradecer ou somente fazer uma visita”, diz Moacir que, apesar de se considerar ateu, reconhece a importância da figura da jovem para a região. Em 1998, ele escreveu o livro Ana Rosa – Sua Vida, Sua História.

No Dia de Finados, o jazigo da jovem é um dos mais visitados do centro oeste do estado paulista: segundo a Secretaria de Turismo de Botucatu, cerca de 500 pessoas de várias partes de São Paulo passam pelo local e deixam flores e cartas à mais ilustre moradora da cidade.

“O Centro Cultural de Botucatu passou um dia todo de Finados monitorando o túmulo de Ana Rosa e constatou que o local não fica mais que dez minutos sem receber visitas”, conta o escritor. Mas, Ana Rosa não é considerada santa pela Igreja Católica.

De milagreira à moda de viola

Por mais de 70 anos, a história de Ana Rosa foi passada de geração em geração de forma oral, até que, em 1957, a dupla sertaneja Tião Carrero e Pardinho gravou uma música que conta a tragédia da jovem, descrevendo Chicuta como um “caipira bastante atrasado” que “batia na pobre mulher com a vara de ferrão de bater no gado”. Intitulada Ana Rosa, a composição é do músico Carreirinho, nascido em Bofete, município a 45 km de Botucatu.

O botucatuense Davi Franque conheceu a história de Ana Rosa por meio da música de Tião Carreiro e Pardinho, quando trabalhava como técnico de som numa rádio local.

“Um dia, Nhô Tião, um locutor de programa de música sertaneja. pediu que eu começasse o programa com a música Ana Rosa. A canção despertou minha curiosidade, pois era uma história bem contada pela voz de Tião Carreiro e Pardinho”, lembra Davi. Após o programa, perguntou ao locutor se a história era verídica. “Nhô Tião me levou de carro até o Cemitério portal das Cruzes e me apresentou ao túmulo de Ana Rosa”.

Ele conta que não é devoto de Ana Rosa, mas se tornou um admirador da moça, tendo feito um curta-metragem com recursos próprios para contar a história da jovem assassinada.

“O que me cativa nessa história é o fato de Ana Rosa ter tido a coragem de fugir do marido em pleno ano de 1885, época em que a mulher era totalmente submissa ao homem. Ana Rosa era uma mulher forte”, afirma Davi. “A história poderia ter outro desfecho que não esse trágico, mas o mais importante é que Ana Rosa não aceitou viver esse tipo de vida submissa”.

Justiceira

Ana Rosa se casou com apenas 15 anos e foi a segunda mulher de Chicuta – não há registros sobre a primeira. Nos cinco anos em que durou a união, o casal viveu em uma fazenda na região de Avaré, a 77km de Botucatu.

Cansada de apanhar e ser maltratada pelo marido, conhecido por ser agressivo e ciumento, ela aproveitou uma viagem a trabalho dele para fugir de casa, tendo recebido ajuda de um velho escravo do marido.

“O escravo roubou um cavalo da fazenda e levou Ana Rosa para Botucatu, onde a moça tinha uma tia que era costureira em um cabaré, local em que também morava”, narra Moacir. “O plano de Ana Rosa era passar uns dias com a tia até conseguir fugir para o Sul do país e sumir para sempre do marido”.

Quando voltou de viagem, Chicuta descobriu a fuga. Matou o escravo que ajudou Ana Rosa e seguiu para Botucatu em busca da mulher. Tentou tirá-la à força do cabaré, mas foi impedido pela tia de Ana Rosa e pela dona do bordel, Fortunata Jesuína de Melo.

Furioso, Chicuta contratou dois capangas e bolou um plano: um deles, José Antonio da Silva Costa, o Costinha, se aproximaria de Ana Rosa, conquistaria a confiança da jovem e diria conhecer uma comitiva de tropeiros que poderia levá-la até o Paraná.

O plano deu certo e, na madrugada de 21 de junho de 1885, ela seguiu com o moço para a região do Rio Lavapés, direto para a emboscada que resultaria na sua morte.

Os assassinos foram a julgamento, mas Chicuta foi absolvido, alegando ter cometido o crime em defesa de sua honra. Costinha, por ser de uma família rica da região, também foi absolvido. O único condenado foi o capanga Hermenegildo Vieira do Prado, conhecido como Minigirdo, filho de escravos.

Pouco tempo depois, os três envolvidos com o assassinato de Ana Rosa também morreram de forma trágica: Minigirdo foi o primeiro, tendo contraído varíola na prisão e ali morrido. O segundo foi Costinha, que foi esmagado por uma árvore enquanto a cortava. O último foi Chicuta que, ao consertar o carro de boi em que viajava, uma das rodas do veículo passou sobre seu pescoço e o matou degolado. Devotos de Ana Rosa costumam atribuir ao espírito da moça as mortes de seus algozes.

Santa não canônica

Não há informações precisas sobre o início do culto em torno de Ana Rosa, santa popular que tem até uma oração própria:

“Oh! Alma piedosa de Ana Rosa, vós que tão bem conheceis os sofrimentos desta vida, intercedei por nós junto a Todos os Santos, a Nossa Senhora Mãe de Deus e a Jesus seu filho. Rogai pela diminuição de nossa provação e pela solução dos nossos problemas [pensar no problema]. Ajudai-nos a ser merecedores da Misericórdia Divina”.

Ana Rosa teve uma capela erguida em seu nome, em 1921, no local em que o seu corpo foi encontrado, hoje o bairro da Cohab I de Botucatu. Assim como o jazigo, a capela também é pintada de rosa e mantida pelos moradores da cidade.

“O primeiro padre que rezou missas na capela de Ana Rosa foi mandado embora de Botucatu porque a Igreja Católica não reconhece as graças operadas pela moça”, lembra Moacir.

No Dia de Finados de 2012, um grupo de devotos começou a recolher assinaturas de visitantes do túmulo de Ana Rosa. O objetivo é reunir provas para se fazer um pedido de beatificação à Igreja Católica.

Até o momento, a história ainda não teve um desfecho favorável à popular milagreira paulista. Mas, segundo Moacir, uma vitória já foi conseguida, já que celebrações religiosas voltaram a acontecer com aval de padres de Botucatu na capela de Ana Rosa.

No âmbito judicial, a memória de Ana Rosa recebeu reconhecimento em outubro, quando estudantes de uma faculdade de Direito de Botucatu promoveram um júri popular simulado do caso e condenou Chicuta a 25 anos de prisão. Agora, para Moacir, “só falta a canonização”.

Canonizada ou não, o caso de Ana Rosa “é atual, infelizmente”, afirma Moacir, já que machismo e violência contra a mulher seguida de impunidade aos agressores nunca foram tão frequentes.